Alguns ingredientes ficam em segundo plano. O rocoto não fica em segundo plano.
O rocoto é uma das malaguetas essenciais do Peru. É intenso, é antigo e define o sabor de muitos pratos peruanos — especialmente o ceviche.
Neste artigo explicamos o que é o rocoto, de onde vem, ao que sabe e como o usamos no NANIKA em Matosinhos, Porto, Portugal.
O que é o rocoto?
O rocoto é uma malagueta tradicional do Peru. É diferente da maioria das malaguetas que as pessoas conhecem:
- É arredondado, carnudo e suculento, em tons de vermelho, laranja ou amarelo — muitas vezes parece quase um mini pimento.
- As sementes são escuras (por vezes quase pretas), o que já avisa que isto não é “suave”.
- A planta tem folhas com ligeiro pelo. O nome científico é Capsicum pubescens (“pubescens” = com penugem).
- O sabor é fresco, levemente doce… e muito picante.
Não é apenas “mais uma malagueta picante”. Na cozinha peruana, o rocoto faz parte da identidade.
Uma malagueta com história
O rocoto não é uma moda moderna, nem uma invenção de chef. É antigo.
Esta malagueta é cultivada na região andina há milhares de anos, desde antes do Império Inca. Cresce bem em zonas altas e mais frias, onde muitas outras malaguetas não resistem. Isso tornou o rocoto fundamental na alimentação andina: era algo fiável, que continuava a produzir.
Por causa disso, o rocoto entrou em receitas tradicionais e ficou especialmente associado ao sul do Peru. Cidades como Arequipa têm pratos emblemáticos à base de rocoto. Nessas zonas, o rocoto não é “picante para turistas”. É comida do dia a dia.
Quando um peruano diz “mete rocoto”, não está só a dizer “mete picante”. Está a dizer “mete sabor peruano de verdade”.
Quão picante é o rocoto?
Resposta curta: o rocoto é forte.
O ají amarillo (a malagueta amarela/alaranjada típica do Peru) costuma ser picante médio a médio-forte. Sentes o calor, mas dá para comer com calma.
O rocoto vai mais longe.
O picante do rocoto é directo e rápido. Sentes logo nos lábios e na língua. Não é aquele ardor lento e fumado de alguns malaguetões secos. É limpo e imediato.
Mas há um ponto importante: apesar de ser forte, continuas a sentir o sabor da comida. O rocoto não tapa tudo com ardor. Mantém o prato vivo. É por isso que os peruanos o usam em pratos frescos, sobretudo com peixe e marisco.
Rocoto vs. Ají Amarillo
A cozinha peruana usa estas duas malaguetas o tempo todo, mas elas não fazem o mesmo trabalho.
Ají Amarillo:
- Sabor: frutado, cítrico, levemente doce.
- Função: dá corpo, perfume e aquela cor amarela/alaranjada típica.
- Cor: amarelo-alaranjado intenso.
- Picante: médio a médio-forte.
Rocoto:
- Sabor: fresco, “verde”, levemente doce, crocante.
- Função: dá tensão, impacto, energia.
- Cor: vermelho vivo (normalmente).
- Picante: forte.
Em muitos pratos peruanos — especialmente ceviche e leche de tigre — o ají amarillo constrói a base do sabor e o rocoto dá o estalo final.
Sem ají amarillo, o prato perde profundidade.
Sem rocoto, o prato perde emoção.
O ideal é ter os dois.
“Picante” no Peru quer mesmo dizer picante
Isto é importante se só provaste “ceviche estilo europeu”.
O ceviche tradicional peruano não é suave. Deve ter picante a sério, muitas vezes a um nível parecido com comida tailandesa autêntica.
No Peru, alguém pode servir-te um ceviche e dizer “não é muito picante”, e depois dás a primeira garfada e ficas a arder nos lábios.
Esse nível de calor vem muitas vezes do rocoto (às vezes combinado com ají amarillo). A malagueta é triturada na leche de tigre — o líquido cítrico e picante que “cozinha” o peixe — ou é picada muito fina e misturada no fim.
Porque é que tem de ser assim tão picante? Por equilíbrio:
- A lima dá acidez.
- O sal traz o sabor ao de cima.
- O peixe fresco dá doçura natural.
- A cebola roxa e os coentros dão frescura.
- O rocoto dá energia.
Sem picante, fica “peixe no sumo de lima”.
Com picante, é ceviche.
Rocoto Relleno
Um dos pratos mais famosos com rocoto é o rocoto relleno, típico de Arequipa, no sul do Peru.
Funciona assim:
- O rocoto inteiro é aberto e limpo, tirando sementes e as veias interiores (onde está o picante mais agressivo).
- Muitas vezes é escaldado ou demolhado para baixar um pouco a intensidade.
- É recheado com carne picada bem temperada (normalmente vaca ou porco, com cebola, especiarias, às vezes passas ou amendoim).
- Leva queijo por cima e vai ao forno.
O resultado é rico, salgado, ligeiramente doce, profundo, ainda picante mas comedível. Não é um “molhinho”. O rocoto é o próprio prato.
Para Arequipa, isto não é “pimento recheado à peruana”. É património.
Salsa de Rocoto
Outra forma clássica de usar rocoto é em molho de mesa.
A salsa de rocoto costuma ser rocoto fresco triturado com óleo, sal, às vezes sumo de lima, e em algumas versões cebola ou tomate.
Parece inofensivo: vermelho vivo, brilhante, cremoso. Não é inofensivo.
Este molho vai por cima de:
- peixe frito,
- anticuchos (espetadas grelhadas),
- mandioca frita,
- batata,
- até arroz simples.
Uma gota acorda o prato todo. Duas gotas já é teste de coragem.
No Peru é normal ter este tipo de molho na mesa, como nós temos azeite.
Rocoto no ceviche e na leche de tigre
A leche de tigre — o líquido cítrico e salgado que “cozinha” o peixe cru do ceviche — não é só sumo de lima. É também sal, caldo do próprio peixe, coentros, cebola… e malagueta.
O ají amarillo dá corpo, textura e cor.
O rocoto dá aquele impacto imediato que te obriga a prestar atenção.
Há dois estilos principais de usar rocoto no ceviche:
- Rocoto triturado: o rocoto é batido directamente dentro da leche de tigre. O picante fica espalhado de forma uniforme.
- Rocoto picado muito fino: pequenos cubos crus de rocoto entram no fim. Assim, cada garfada é diferente — uma pode ser só cítrica e limpa, e a seguinte pode arder.
Isto mantém o ceviche interessante até à última colherada. Não é suposto ser previsível. É suposto ser viciante.
Também é por isso que o ceviche peruano original pode parecer “muito forte” para quem só conhece versões mais suaves. É para ser acordado, não adormecido.
Rocoto e a cozinha Nikkei
O Peru tem uma comunidade japonesa enorme e uma história longa de intercâmbio culinário. É daí que nasce a cozinha Nikkei: técnica japonesa + ingredientes peruanos.
O rocoto encaixa perfeitamente nisto.
Imagina peixe cru cortado com precisão japonesa, estilo sashimi. Em vez de só molho de soja e wasabi, entra um molho cítrico com coentros, sal e malagueta peruana.
O ají amarillo dá calor suave e redondo.
O rocoto dá o corte, a energia, o “aqui estou eu”.
O resultado continua a respeitar o peixe, mas tem sabor 100% peruano. É literalmente o Japão e o Peru no mesmo prato.
Como uma cozinha séria trabalha o rocoto
O rocoto é forte. Não se pode usar à sorte. Uma cozinha séria faz isto:
- Controlar sementes e veias
A maior parte do picante extremo está nas sementes e na membrana branca interior. Tirar isso reduz o choque, mas mantém o sabor. - Cru vs. cozinhado
Rocoto cru = picante rápido, directo, brilhante (perfeito para ceviche).
Rocoto cozinhado = sabor mais redondo, um pouco mais doce e profundo (perfeito para rocoto relleno). - Equilíbrio acima de tudo
Se usas tanto rocoto que a boca fica dormente, deixas de provar o peixe, os citrinos, a carne, a batata — e aí já não é bom. A ideia não é destruir. É levantar o prato. - Cuidar da cor
Um bom molho de rocoto deve ser vermelho vivo, com brilho. Se está castanho ou morto, alguém queimou ou misturou demasiado “enchimento”.
Posso cozinhar com rocoto em casa?
Se conseguires encontrar rocoto fresco, sim.
Algumas dicas:
- Atenção às mãos e aos olhos. Isto é uma malagueta séria.
- Abre o rocoto e tira as sementes e as veias interiores se quiseres menos violência.
- Tritura com um óleo neutro, sal e um bocadinho de sumo de lima. Ficas logo com um molho picante para pôr em camarão grelhado, frango assado, batata, legumes grelhados, etc.
- Usa pouco no início. O rocoto não é “vamos meter quatro e logo se vê”.
Também: não dá simplesmente para trocar por jalapeño ou malagueta qualquer do supermercado e achar que é igual. O jalapeño é mais verde e suave. O habanero é floral e agressivo de outra maneira. O sabor do rocoto é mesmo específico e muito peruano.
Rocoto no NANIKA
No NANIKA, em Matosinhos, Porto, Portugal, o rocoto não é decoração nem desafio.
Usamos rocoto porque faz parte da cozinha peruana real: no ceviche, na leche de tigre, nos toques Nikkei de peixe cru e nos molhos que dão vida ao prato.
A ideia é dar calor suficiente para saber “isto é Peru”, mas sem tapar o sabor do peixe e dos citrinos.
Por isso, o convite é simples:
Vem provar.
Sente primeiro a acidez da lima, o sal e o frescor do peixe.
Depois sente o ardor limpo e directo do rocoto verdadeiro.
Isto não é “inspirado no Peru”.
Isto é Peru, servido em Matosinhos.